sexta-feira, 20 de março de 2015

Hiato

E eis que a chuva parou. Estiou, anunciada pelo barulho dos pássaros. Sons que pouco se ouvia naquela terra de ninguém.  Um sol tímido se mostrou entre as nuvens cinzentas, acosteladas por raios brancos de luz. O estado perene de entardecer úmido cedeu para um dia ensolarado e seco. As pessoas saíram de suas casas, atordoadas. Chega uma hora que as coisas tem que acabar. E assim acabaram os contos da terra de ninguém. Por longo tempo nada se ouviu, e o cotidiano silencioso trouxe a incomoda sensação de que nunca mais choveria de novo. Mas "acabar" e "nunca" são palavras deveras profundas. Poucos são os que testemunham o seu cumprimento real. E isso talvez traga consolo a alguns. Mas por hora, silêncio e silêncios. Silêncios de várias partes e profundidades. Quietudes e cantos de pássaros. Barulhos de insetos e crepitar de fogueiras. O vago som da serenidade.
Até o dia em que a chuva volte e banhe a terra de ninguém e seus contos se façam ouvir novamente. 
Caberia o verso jazer velado no cemitério enluarado.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Parece que a vida passou

Na primeira cartinha jaz um endereço que não corresponde mais. Há um telefone que já é de outro alguém. E também um punhado de poemas feitos no auge da felicidade, de um amor que já se foi. Mas ainda sim, pouco dói mais que saudade num fim de tarde ensolarado.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O som de tambores distantes

Os dias frios eram, para ele, reconfortantes. Quando chovia, o vidro da janela de madeira ficava embaçado e gotas de água deixavam caminhos translúcidos por onde escorriam, formando nele uma série de cicatrizes de padrão aleatório. O vento fazia o teto ranger suavemente ao seu sabor, e das extremidades do telhado a água da chuva jorrava formando uma cortina transparente. Lá fora uma série de poças se formava e pássaros cantavam timidamente. O barulho da chuva a assobiar baixinho aquela melodia triste preenchia a casa, e aquele barulho podia ser acrescido com o ranger das vigas de madeira sob seus pés caso ele se deslocasse por ali. Havia também o som da lareira a crepitar timidamente, como se não se atrevesse a desafiar o som da chuva. O fogo queimava de modo suave, lançando feitiços e desejos no ar. Preso a uma haste de ferro sobre a lareira pendia um bule, a se balançar de maneira quase imperceptível. Os lençóis que cobriam a cama lançavam no ar uma fragrância fria que se escondia por trás do cheiro da chuva e da grama molhada. Nas mãos dele, sentado no sofá defronte a janela, descansava uma xícara fumegante de café, aninhada entre as duas mãos e pernas. Ela deixava pairando no ar uma baforada suave de fumaça que rapidamente desaparecia. Com um olhar perdido, ele encarava a janela, e há muito o que possa se dizer sobre um olhar perdido. Um olhar perdido não necessariamente tem olhos que vagueiam, sem direção. Como os dele, os olhos podem se fixar em um ponto qualquer e ali se perderem. Não se sabe exatamente se ele encarava a janela e se limitava ao vidro embaçado ou se seu olhar se lançava entre os rastros translúcidos deixados pelas gotas e vislumbravam além da cortina transparente que fazia a água ao escorrer do telhado. E sob o som desafinado desse conjunto de coisas, no horizonte distante raios chicoteavam a terra e rasgavam o ar. A luz dos relâmpagos preenchia todas as fendas da casa, ofuscando a janela e espremendo-se por cada brecha entre as vigas de madeira que formavam as paredes. Depois de alguns segundos depois da luz, ele contava vagarosamente em sua mente, o ribombar dos trovões era como o som de tambores distantes que se aproximavam numa cadência crescente. Era como uma avalanche de pedras a rolar montanha abaixo. Alguns se encolheriam sob seus cobertores e tampariam os ouvidos, lançariam olhares amedrontados para as janelas e rezariam para que a tempestade passasse. Mas não o homem do olhar perdido. Ele se limitaria a ficar ali, sentado, contando os espaços entre luzes e sons, deixando seu café esfriar lentamente, admirando a baforada suave de fumaça rodopiar, dobrar-se sobre si mesma e desaparecer, risonha. Seu transe permaneceria, enquanto o som de tambores distantes o enchesse de poesia.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Sobre a natureza do ódio

Ódio tem gosto de sangue. Gosto que não sai com banho e bala, que pinga sobre os lábios e escorre pelos dentes, que a língua degusta sem querer e a garganta engole com relutância. Ódio tem cheiro de vinagre, que não sai com banho e nem perfume, que fica encrustado na pele como um lembrete infeliz, uma brincadeira de mal gosto que leva aquele que sente o ódio a querer arrancar a própria pele. Ódio é lábio rasgado e costurado, que gruda e trança e fecha a boca, e impede o grito e entala na garganta toda a raiva que arde como fogueira cheia de lenha. Que impede a embriaguez e o prazer da comida. Que humilha e fere o orgulho. Silêncio e impotência infringem mais ódio, que alimenta a fogueira e ela arde tanto mais que fere o corpo. Ódio é a repetição infinita de uma cena de covardia e a sensação perene de impunidade, o desejo de voltar ao passado pra fazer diferente e a sensação imediata de que isso é impossível. Ódio é o ranger dos dentes de tanta raiva. Tanta que dissipa o gosto de sangue e o cheiro de vinagre. Ódio é o fechar da mão num punho cerrado que soca a parede e nada sente, e portanto nada se alivia. Ódio é respiração pesada e o pensamento distorcido. Neblina que cega a razão e fogo que queima e atiça mais fogo. Ódio é o desejo de devolver tudo com as próprias as mãos, de cuspir de novo todo o sangue que caiu. É sensação incontrolável de querer destruir tudo e de gritar até ficar sem voz e sumir do mundo de uma vez por todas.

O porto seguro e o mar revolto

Dizem por aí que ela quis tornar o porto seguro um lugar feliz, mas ninguém sabe se ela gostava mesmo dele. O mar revolto ainda chamava, beijava seus ouvidos com os sons das ondas rodopiantes a quebrar na areia da praia, e toda aquela música era um convite tentador. E sabia-se: ela amava o mar revolto. Ela queria, no fundo, sim, precipitar-se de vez nas águas e perder-se naquele mar escuro e na luz da lua, cheia de segredos e histórias profundas de paraísos perdidos, tesouros brilhantes e campos verdejantes. As ondas se embolavam num ritmo aleatório, dentro do seus olhos escuros e na areia da praia. Num compasso obscuro espumavam ao quebrar e rolavam, sibilando, tentando alcançar os pés dela, presos na areia úmida. Elas queriam abraçá-la e trazê-la para as profundezas. A lua e o porto e o mar desenhavam-se em seus olhos escuros. Os cabelos desgrenhados esvoaçavam ao vento, emoldurando seu rosto de fada. Ali ela era só silêncio e dúvida. Pesar e dor. Um sorriso partido, um olhar perdido, uma lembrança desfeita feita fumaça e vapor. Solidão e vazio. A natureza do seu verso dócil contrastava com o perverso comportamento do mar. Ela parecia entoar baixinho uma canção de ninar, mas o mar regia uma orquestra barulhenta. O mar gritava e se debatia. Era um turbilhão espumante, um maremoto violento que tentava tragar o mundo para si. Cheirava a ferro e sangue, a fogo e aço. Cheirava a sal e dor, ódio e rancor. Gritava e se debatia. O ribombar das ondas era como tambores e o vento contra o mar como trombones. O sibilar das ondas na areia eram cordas que se partiam e lâminas que rasgavam a carne. Existem coisas que não devem ser ditas, coisas que não devem ser feitas, coisas que não são para acontecer. E como tudo que não deve ser, não o é, ali ficaram naquela dança, de modo perene, interminável. Ela, o mar, a lua, o porto. O porto jazeria esquecido algum dia, mas estaria ali o tempo inteiro enquanto aquela dança durasse. Só que seus pilares cheios de musgo e sua aura conflituosa não mais a apeteciam. E ainda sim era difícil para ela entrar no mar. Temia o frio, temia se afogar, temia perder-se e no meio da perdição temia não se encontrar. Logo o dia passaria, e como o tempo urge o leitor deve saber logo do destino dos outros três: a lua sumiria, a maré traria o mar pra longe dos pés dela, e ela adormeceria na areia, seu corpo aninhado sobre si mesmo, nua. Silêncio e dúvida. Pesar e dor. Um sorriso partido, um olhar perdido, uma lembrança desfeita feita fumaça e vapor. Solidão e vazio.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Cemitério enluarado

Versos sombrios jazem na escuridão.
Sibilam palavras amargas num silêncio.
Cortam a carne como um açoite.
Sopram um vento frio
Que chicoteia a alma já morta
Que jaz num cemitério enluarado.

Roleta russa

Seus olhos embriagados não viam nada. Era tudo um borrão, cachoeira e fumaça. Só sabia distinguir o contorno suave das curvas da garrafa sobre a mesa. Não via os detalhes encrustados no vidro frio, cuidadosamente desenhados quando aquela garrafa verde ainda era um pedaço incandescente de fogo e ardência. Estava sentado na cadeira de madeira que ficava na varanda, defronte a verde doçura do mato e da solidão, num lugar isolado de barulhos estridentes, gestos, olhares e feições graves. Ali era tudo um silêncio com alguns sons pontuais: a brisa, as folhas, a chuva, os pássaros. Sim, havia pássaros. Um punhado deles cantava uma melodia que tinha no seu compasso a contagem sutil do tempo passando e do dia morrendo. Peneirava uma chuva fina, e o som da chuva e os pássaros beijava os ouvidos dele suavemente, como baforada de fumaça. Na outra mão que não visava a garrafa pendia entre os dedos um cigarro não fumado, que queimava rapidamente, tragado pela brisa. Serviu-se da garrafa e bebeu um longo gole de vinho. Depois um trago. E lá ficou durante um tempo. Um gole. Um trago. Um gole. Um trago. Um compasso discreto, a contagem do tempo que fazia o dia morrer. Logo anoiteceria. Logo seu cigarro acabaria e sua garrafa estaria vazia. Seus olhos estavam fixos no horizonte, e este não era muito distante: o máximo que podia ser visto era um emaranhado de árvores logo ali, e sua visão, na verdade, embaçada pela embriaguez e distorcida pela dor, só lhe permitia ver um borrão verde. As vezes sua cabeça pendia. Seu óculos estava embaçado, mas aquilo não fazia diferença. Há de se dizer também que havia sobre o seu colo uma pistola. Seis tiros ela tinha, perfeitamente aninhados numa roleta negra. Sua arma era negrume, sua mente neblina, seu corpo embriaguez. E eis que, dado o cigarro fumado e a garrafa vazia, seus dedos deslizam sobre o cabo da arma. Sua mão tremula distribui os dedos na arma e ele levanta o braço contra o horizonte. Seus alvos eram os pássaros. A melodia incessante lembrava-lhe do relógio inexorável a fazer tique-taque. Seis tiros para acabar com a dor. Um. O som se distribui no ar, um eco surdo e seco se propaga pelas arvores e resvala nas superfície. Os pássaros se agitam, mas nenhum cai. E retornam a cantar. O primeiro tiro é esperança e tentativa. É fervor e ansiedade. Dois. Um som igual, idêntico ao primeiro. Nenhum pássaro cai. Eles voam, batem asas e depois cantam mais alto. Ele range os dentes tão forte que poderia quebrá-los. O segundo tiro é insegurança, é esperança e medo, mas é também otimismo. Três. E tudo acontece da mesma forma. Não há silêncio. Tique-taque. O terceiro já tem um quê de desespero e raiva. Já não tem a mesma frieza, já não existe cautela e pré-medição. Quatro. Nada. Tudo vão. O intervalo entre o terceiro e o quarto é muito sutil. O quarto já é incredulidade e puro desespero. E logo vem o quinto. Cinco. Nada. O tempo é inexorável, e assim são os pássaros a cantar e voar, e assim é a dor. E eis que ele desiste de mirar os pássaros. Seu braço se movimenta rapidamente, com uma destreza não mostrada até o momento, e logo sua têmpora sente o cano frio da arma. Seis. A garrafa cai e se quebra. Já não existem mais cigarros. Já não existem mais pássaros. Silêncio. Enfim, silêncio. Ás vezes só é possível silenciar a si mesmo.    

Esmeralda

Seus olhos eram profundos e tragavam o mundo, como apetece aos poetas. Perto das pupilas eram como lareira, ardiam indagações e respostas e segredos, um brilho pálido amarelado, mas intrigante como céu noturno estrelado. Mais pra longe eram mais claros, traziam consigo um vazio pungente, um silêncio estrelado. Silêncio dentro de silêncio. O brilho verde esmeralda das bordas era cortante como vidro. Grande e vivo. De brilho alto, tão alto como uma mulher alta na ponta dos pés. Sua expressão era austera. Séria. Eu diria que seu sorriso escondido era guardião de razões e motivos. Ele raramente se mostrava, e o olhar rígido dela podia cortar e assustar os pobres de espirito. Mas caso ela quisesse, como a calmaria que sucede a ressaca do mar revolto, poderia desfazer corações de pedra. E esses seres capazes de desfazer corações de pedra são no minimo perigosos. Sob o céu noturno seus cabelos negros se perdiam. Eram austeros, feito carvão, risonhos feito chocolate, serenos como as águas lisas de um rio. Gostavam de brincar ao sabor do vento feito brasa de fogueira, e rodopiantes jogavam-se sobre a sua boca. A boca era a guardiã do sorriso. A guardiã do guardião. Ela era brilho, feito maçã corada, e poesia e desejo e um sonho de verão. Era fada, emoldurada. Rainha coroada. Plebeia de roupa enlameada e fina dama num vestido longo. Era um incógnita e uma interrogação. Uma poesia sutil. Uma prosa feroz. Um desejo ardente. Mas só um desejo.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Amor (livre) de carnaval

Eu te amo, meu bem
mas só por hoje, e agora
porque sei do seu espirito livre
e não sou de prender os pássaros
nem quero ser âncora de ninguém
que não queira também.

Eu te amo, meu bem
mas só enquanto os nossos lábios se tocam
nesse amor de carnaval
só enquanto nosso abraço dura
e estou junto de você.

Eu te amo, meu bem
por hora vamos só voar
e cantar por aí, estou me divertindo
enquanto eu posso puxar o seu cabelo
encharcado de suor, nesse beijo.

Eu te amo, meu bem
mas só enquanto posso dançar contigo
pra nós dois variarmos a dor
só enquanto estamos bêbados
e o mundo gira
e esse dia é bonito.

Nunca amei tão rápido, meu bem
e desamei tão fácil.
Admiro as pessoas de espirito livre
eu diria, antes, "cuidado"
mas hoje digo: "inspire-se".

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Texto e contexto

Desculpe, caro leitor,
A falta de textos por aqui
É que eu ando mais atrás de contextos
Pra procurar conversas
Que me preencham mais uma vez.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O hiato: os últimos rumores sobre vendedor e freguesa.

Foi-se a lua adversa,
Restaram só as sombras da noite.
Uma moedinha esquecida na fonte,
Algumas garrafas cheias de memória.
E uma delas vazia, a mais importante.
Além do coração na mesa.
Reinava o silêncio.
Pairava no ar uma pergunta:
Tudo vão,
Ou não

(?)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Dança sob um céu de diamantes

Faça eu desaparecer pelos anéis de fumaça da minha mente
Além das nebulosas ruínas do tempo, além das folhas congeladas,
além do assombro das árvores nessa praia e essas ventanias
Longe do alcance distorcido da tristeza insana
Sim,
Pra dançar sob um céu de diamantes com as mãos acenando livremente
Adornado pela luz da praia e os círculos de poeira pairando no vento
Com toda memória e o destino navegando para além das ondas
Deixe-me esquecer o hoje (e o ontem), só até amanhã.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Onde as coisas começam e terminam

Sentado em frente a janela, admirava a paisagem. Com serena determinação mirava o sol poente no horizonte. Via o domingo se esvair, as mãos cruzadas sobre a mesa, olhando pela fresta dos dedos entrelaçados. Respirou fundo e separou as mãos. Mirou as palmas: não tremia, não chorava. Olhou a nesga de céu azul que restava e suspirou. Evocou um punhado de memórias e as queimou feito incenso, pra sentir o cheiro da saudade. Uma vez queimadas, as coisas não retornam a vida, ou era o que lhe haviam dito. Com uma outra parte das memórias fez um chá e o provou. Tinha um gosto amargo, quase intragável. O vinho lhe cabia melhor. Mas também já fazia tempo que sua vida não era doce e seu amor era vão, então aquilo realmente não importava. Deixou a caneca de lado e olhou a janela de novo. Entrelaçou os dedos e rangeu os dentes. Somado a tristeza típica do domingo, havia raiva também. Havia dor, mas pelo menos a ciência de que não havia dor maior do que a dor humana lhe confortava: era forte, afinal das contas. A luz do sol foi indo embora, e aos poucos a luz alaranjada da rua foi surgindo, e com ela as luzes das casas e prédios, como se uma luz no horizonte assinalasse a um comodo qualquer em outro ponto da cidade que era a hora de abrir os olhos, e magicamente a cidade se iluminava. Enfim, as luzes das casas, prédios e ruas foram se acendendo, como se roubassem a luz que vinha do céu. Seu pensamento vagueou por um conjunto de memórias, algumas que lhe restavam ali. Não verteu uma lágrima, afinal de contas. Suas fatídicas rotinas e estradas percorridas lhe asseguraram com um sibilar rodopiante no vento: "mantenha um estado transitório entre a partida e a chegada; economize em desfechos e introduções; viva rápido, mas não envelheça - conserva o espírito jovem e invencível, porque essa coisa de sagacidade pode ser uma estrada pra amargura; continua vivendo a tua poesia e procurando gente profunda pra se ancorar sem medo; releva a tua percepção do tempo, pra que o tempo pare e você continue jovem, se é isso que te angustia; e guarda com ternura as suas memórias, porque nem sempre se pode viver na ebriedade do futuro ou na amargura do presente". Coçou a barba, estalou a língua e apagou a luz. 

sábado, 10 de janeiro de 2015

Masturbação mental

Parei um minuto pra ouvir o som das coisas silenciosas e rever o que estava escondido na escuridão. Não achei nada. Revirei um baú velho e estava tudo empoeirado, usado demais. Não havia nada com o que me segurar ao passado. Abateu-se sobre mim grande solidão. E que te livrem, caro leitor, dessa masturbação mental pela qual passei. É triste, depois de tudo, concluir que a lucidez realmente só nos visita depois da loucura. E, cacete, como é difícil pensar que é fácil viver de poesia e se dar conta de que nada disso é possível. Ela pode encantar, eu sei, mas seu preenchimento é tão vão quanto as palavras. É preciso poder apalpar a felicidade pra não se cair no vazio da ausência de perspectiva. E, porra, já me visita esse buraco de novo. É como um tiro no peito. Afinal, tinha que ter um lugar de onde sair tanta poesia. Há essa música na minha cabeça, de novo. Um verme do ouvido a me atormentar. Há uma voz tentando me dizer o que fazer, dizendo pra eu entender que tudo isso é vão como o tempo. Eu queria me desfazer com a chuva. Voar num foguete pra lua. Queria, de novo, ir embora daqui e recomeçar. Sei que isso pode ser só um texto meio ébrio, mas pelo menos o mundo parece ser mais real daqui. E de superficialidade eu já cansei. Até quem eu pensava ser profundo se escondeu sobre uma faixa e foi embora daqui. Porque são poucas as pessoas que falam sobre as coisas profundas, e vivem elas do jeito que elas devem ser vividas. É mais fácil se esconder sobre o véu das ilusões, desses sorrisos falsos e fotos bonitas. Sou de novo um bebê acorrentando num saco jogado na correnteza do rio. Meu autorretrato é de fato bêbado e confuso, como eu pensava. Mas eu justifico isso com prazer. Embriaga-te você também, caro leitor, e vê se o mundo embaçado e tropego não tem mais graça. Não seja um fraco de espirito. Tenha coragem. Ofusca a razão, porque eu sei que qualquer boa razão vai se opor a essa ideia maluca. E se ainda sim seus pés pestanejarem a abraçar a embriaguez, responde-me: qual o destino dos sóbrios? Qual o destino dos seres racionais e realistas, que senão a depressão? Qual o destino daquele que vive a vida sem se embriagar que senão a amargura de se dar conta da vulgaridade das coisas? Eu prefiro realmente estar bêbado e não entender nada à ter que refletir sobre essa miríade de possibilidades que aparecem quando estou sóbrio. Essa masturbação mental de nada me serve. Nela não há poesia, não há rima, não há beleza, não há música, não há verso. Só há saudade e perda. E não que eu ache que essas coisas são dispensáveis, mas quem vive só de saudade e perda está além dos limites da poesia e se encontra com a morte. É dor demais. E como dizem os sábios, não existe dor maior do que a dor humana. Então, como diz Baudelaire: embriaga-te. Abre mão dessa masturbação mental que é o pensar e entrega-te de uma vez ao vício. É melhor isso do que se entregar a morte, atirando-se ao canal, ou deixando-se levar pelo fantasma da loucura. "Embriaga-te! Para não ser como os escravos martirizados do tempo, embriaga-te sem cessar! De vinho, poesia ou virtude, a teu gosto!".

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

(A)mar

A lua sobre o mar era um escudo prateado contra a escuridão profunda. O som das ondas era um compasso calmo, um ritmo lento que embalava, uma melodia triste, porém reconfortante, uma canção de dor e perda, mas também o sussurrar que fazia pairar no ar uma lembrança terna. A areia era um tapete liso pra se fazer derramar sensações. E lá estavam eles, sentados lado a lado, ninados pelo barulho do mar e banhados pela luz da lua. Constantemente o olhar deles se perdia no mar e nas luzes do horizonte, e com a mesma intensidade se encontravam um no outro ao virar para o lado e se dar conta de que estavam sendo contemplados. Aquela era a amalgama do sentimento profundo: perder-se e achar-se imediatamente, de modo reciproco. Qualquer pergunta se relevava. O silêncio que envolvia os dois, imersos em cálida contemplação, dizia mais sobre aquilo do que uma odisseia completa. Os corpos falavam, mesmo no silêncio. Depois de um beijo, num lento movimento as pernas se entrelaçaram e os braços se uniram. Eles sussurraram um contra o outro, um por sobre o outro, embalados no ritmo suave do mar, num vai e vem hipnotizante. E lentamente maré vazia foi virando maré cheia, o mar foi beijando a terra, envolvendo-a num abraço terno, como era o deles dois. E quanto mais fortes as ondas, mais rápido o ritmo deles dois. O vento frio já nem importava, porque o (a)mar que banhava os dois era quente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Coincidências

Taca fogo na fabrica de chorar
Trás a lenha
Não venha com seu desaguar
Falta amor
Falta dia
Pra noite clarear
Então vai tristeza
E leva essa moça de casa
Que em casa não dá mais

Da bem-aventurança e da alegria

"É que da bem aventurança e da alegria na vida há pouco a ser dito enquanto duram; assim como as obras belas e maravilhosas, enquanto perduram para que os olhos as contemplem, são registros de si mesmas; e somente quando correm perigo ou são destruídas é que se transformam em poesia."

J.R.R Tolkien - O Silmarillion.

Sem título, de novo.

Mar
Amar
Amargo
Amargura

Morte fatídica

ATESTADO DE ÓBITO

Nome do sujeito: amor.
Causa da morte: visível desproporcionalidade entre as partes.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Vinho, poesia, tempestade, tequila

Ela era vinho e poesia, mas sabia ser tempestade e tequila. Quando cansava-se da sobriedade, ele vertia uma taça dela e se perdia. Os olhos nitidamente se encontravam na meia luz e, ora, são os olhos as janelas da alma e as sombras de seus corpos projetadas na parede as portas pra embriaguez plena. Ela gostava da sensação de perder e o controle, e a perdia mais por ele do que propriamente pela bebida. Ele se embriagava dela, porque nela se perdia e esse era o seu refugio. Era boa a sensação de estar perdido. Na escuridão ela passou o trinco na porta e o estalo que a fechadura fez trincou a ampulheta do tempo. Quando fez isso, tinha o olhar fixo nele. Despiu-se num movimento rápido e na luz fraca do quarto o bico do seus seios poderia perfurá-lo. E ele a perfurava com os olhos, como se pudesse vencer o espaço entre eles e devorá-la, como se na verdade já tivesse começado a devorá-la naquele curto momento em que ela trancou a porta e trincou o tempo - seu braço sensualmente sobre a maçaneta e a boca entreaberta. Os olhos ardiam com desejo. Dali em diante nunca se sabe como o espaço vazio entre os dois indivíduos se supera tão rapidamente. Seus corpos, unidos, uivaram gritos arrepiantes que fizeram rodopiar no vento um convite silencioso para que o tempo parasse.

Diálogo dos dois diabos

Embrutece, pois, a alma, diz um.
E empedra também o coração

Não perdes a ternura!, diz o outro

Passaste tempos demais no abismo, responde o primeiro,
Suspirando poesias e saudades. Era a hora, mas preferiu-se entender que não agora.

Estás cansado e nu na areia, de novo, diz o segundo
De peito aperto, mais uma vez seu amor é vão.
Mas podes dormir, beber, sonhar, fazer disso poesia.

Já faz tempo que essa dança não termina, cospe o primeiro
Suas pernas doem e só doem menos que o coração
Há um corte no fundo da alma. Uma saudade, uma raiva, uma dor,
E ora, não existe dor maior do que a dor humana, continua.

Não embrutece, canta o outro, de novo.
Não empedra
Terno permanece
Não espera.
Cresce.

(Silêncio)

Blues da sacanagem

Tenho o desejo de dançar contigo um lento blues, pra vagarosamente te beijar, te despir e nos amarmos de modo bêbado, desesperado, violento, poético. Rapidamente nossa dança seria tão bela que de nossos corpos sairiam sons e não haveria música tão profunda quanto a de nós dois.