domingo, 22 de fevereiro de 2015

Roleta russa

Seus olhos embriagados não viam nada. Era tudo um borrão, cachoeira e fumaça. Só sabia distinguir o contorno suave das curvas da garrafa sobre a mesa. Não via os detalhes encrustados no vidro frio, cuidadosamente desenhados quando aquela garrafa verde ainda era um pedaço incandescente de fogo e ardência. Estava sentado na cadeira de madeira que ficava na varanda, defronte a verde doçura do mato e da solidão, num lugar isolado de barulhos estridentes, gestos, olhares e feições graves. Ali era tudo um silêncio com alguns sons pontuais: a brisa, as folhas, a chuva, os pássaros. Sim, havia pássaros. Um punhado deles cantava uma melodia que tinha no seu compasso a contagem sutil do tempo passando e do dia morrendo. Peneirava uma chuva fina, e o som da chuva e os pássaros beijava os ouvidos dele suavemente, como baforada de fumaça. Na outra mão que não visava a garrafa pendia entre os dedos um cigarro não fumado, que queimava rapidamente, tragado pela brisa. Serviu-se da garrafa e bebeu um longo gole de vinho. Depois um trago. E lá ficou durante um tempo. Um gole. Um trago. Um gole. Um trago. Um compasso discreto, a contagem do tempo que fazia o dia morrer. Logo anoiteceria. Logo seu cigarro acabaria e sua garrafa estaria vazia. Seus olhos estavam fixos no horizonte, e este não era muito distante: o máximo que podia ser visto era um emaranhado de árvores logo ali, e sua visão, na verdade, embaçada pela embriaguez e distorcida pela dor, só lhe permitia ver um borrão verde. As vezes sua cabeça pendia. Seu óculos estava embaçado, mas aquilo não fazia diferença. Há de se dizer também que havia sobre o seu colo uma pistola. Seis tiros ela tinha, perfeitamente aninhados numa roleta negra. Sua arma era negrume, sua mente neblina, seu corpo embriaguez. E eis que, dado o cigarro fumado e a garrafa vazia, seus dedos deslizam sobre o cabo da arma. Sua mão tremula distribui os dedos na arma e ele levanta o braço contra o horizonte. Seus alvos eram os pássaros. A melodia incessante lembrava-lhe do relógio inexorável a fazer tique-taque. Seis tiros para acabar com a dor. Um. O som se distribui no ar, um eco surdo e seco se propaga pelas arvores e resvala nas superfície. Os pássaros se agitam, mas nenhum cai. E retornam a cantar. O primeiro tiro é esperança e tentativa. É fervor e ansiedade. Dois. Um som igual, idêntico ao primeiro. Nenhum pássaro cai. Eles voam, batem asas e depois cantam mais alto. Ele range os dentes tão forte que poderia quebrá-los. O segundo tiro é insegurança, é esperança e medo, mas é também otimismo. Três. E tudo acontece da mesma forma. Não há silêncio. Tique-taque. O terceiro já tem um quê de desespero e raiva. Já não tem a mesma frieza, já não existe cautela e pré-medição. Quatro. Nada. Tudo vão. O intervalo entre o terceiro e o quarto é muito sutil. O quarto já é incredulidade e puro desespero. E logo vem o quinto. Cinco. Nada. O tempo é inexorável, e assim são os pássaros a cantar e voar, e assim é a dor. E eis que ele desiste de mirar os pássaros. Seu braço se movimenta rapidamente, com uma destreza não mostrada até o momento, e logo sua têmpora sente o cano frio da arma. Seis. A garrafa cai e se quebra. Já não existem mais cigarros. Já não existem mais pássaros. Silêncio. Enfim, silêncio. Ás vezes só é possível silenciar a si mesmo.    

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