quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Parece que a vida passou

Na primeira cartinha jaz um endereço que não corresponde mais. Há um telefone que já é de outro alguém. E também um punhado de poemas feitos no auge da felicidade, de um amor que já se foi. Mas ainda sim, pouco dói mais que saudade num fim de tarde ensolarado.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O som de tambores distantes

Os dias frios eram, para ele, reconfortantes. Quando chovia, o vidro da janela de madeira ficava embaçado e gotas de água deixavam caminhos translúcidos por onde escorriam, formando nele uma série de cicatrizes de padrão aleatório. O vento fazia o teto ranger suavemente ao seu sabor, e das extremidades do telhado a água da chuva jorrava formando uma cortina transparente. Lá fora uma série de poças se formava e pássaros cantavam timidamente. O barulho da chuva a assobiar baixinho aquela melodia triste preenchia a casa, e aquele barulho podia ser acrescido com o ranger das vigas de madeira sob seus pés caso ele se deslocasse por ali. Havia também o som da lareira a crepitar timidamente, como se não se atrevesse a desafiar o som da chuva. O fogo queimava de modo suave, lançando feitiços e desejos no ar. Preso a uma haste de ferro sobre a lareira pendia um bule, a se balançar de maneira quase imperceptível. Os lençóis que cobriam a cama lançavam no ar uma fragrância fria que se escondia por trás do cheiro da chuva e da grama molhada. Nas mãos dele, sentado no sofá defronte a janela, descansava uma xícara fumegante de café, aninhada entre as duas mãos e pernas. Ela deixava pairando no ar uma baforada suave de fumaça que rapidamente desaparecia. Com um olhar perdido, ele encarava a janela, e há muito o que possa se dizer sobre um olhar perdido. Um olhar perdido não necessariamente tem olhos que vagueiam, sem direção. Como os dele, os olhos podem se fixar em um ponto qualquer e ali se perderem. Não se sabe exatamente se ele encarava a janela e se limitava ao vidro embaçado ou se seu olhar se lançava entre os rastros translúcidos deixados pelas gotas e vislumbravam além da cortina transparente que fazia a água ao escorrer do telhado. E sob o som desafinado desse conjunto de coisas, no horizonte distante raios chicoteavam a terra e rasgavam o ar. A luz dos relâmpagos preenchia todas as fendas da casa, ofuscando a janela e espremendo-se por cada brecha entre as vigas de madeira que formavam as paredes. Depois de alguns segundos depois da luz, ele contava vagarosamente em sua mente, o ribombar dos trovões era como o som de tambores distantes que se aproximavam numa cadência crescente. Era como uma avalanche de pedras a rolar montanha abaixo. Alguns se encolheriam sob seus cobertores e tampariam os ouvidos, lançariam olhares amedrontados para as janelas e rezariam para que a tempestade passasse. Mas não o homem do olhar perdido. Ele se limitaria a ficar ali, sentado, contando os espaços entre luzes e sons, deixando seu café esfriar lentamente, admirando a baforada suave de fumaça rodopiar, dobrar-se sobre si mesma e desaparecer, risonha. Seu transe permaneceria, enquanto o som de tambores distantes o enchesse de poesia.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Sobre a natureza do ódio

Ódio tem gosto de sangue. Gosto que não sai com banho e bala, que pinga sobre os lábios e escorre pelos dentes, que a língua degusta sem querer e a garganta engole com relutância. Ódio tem cheiro de vinagre, que não sai com banho e nem perfume, que fica encrustado na pele como um lembrete infeliz, uma brincadeira de mal gosto que leva aquele que sente o ódio a querer arrancar a própria pele. Ódio é lábio rasgado e costurado, que gruda e trança e fecha a boca, e impede o grito e entala na garganta toda a raiva que arde como fogueira cheia de lenha. Que impede a embriaguez e o prazer da comida. Que humilha e fere o orgulho. Silêncio e impotência infringem mais ódio, que alimenta a fogueira e ela arde tanto mais que fere o corpo. Ódio é a repetição infinita de uma cena de covardia e a sensação perene de impunidade, o desejo de voltar ao passado pra fazer diferente e a sensação imediata de que isso é impossível. Ódio é o ranger dos dentes de tanta raiva. Tanta que dissipa o gosto de sangue e o cheiro de vinagre. Ódio é o fechar da mão num punho cerrado que soca a parede e nada sente, e portanto nada se alivia. Ódio é respiração pesada e o pensamento distorcido. Neblina que cega a razão e fogo que queima e atiça mais fogo. Ódio é o desejo de devolver tudo com as próprias as mãos, de cuspir de novo todo o sangue que caiu. É sensação incontrolável de querer destruir tudo e de gritar até ficar sem voz e sumir do mundo de uma vez por todas.

O porto seguro e o mar revolto

Dizem por aí que ela quis tornar o porto seguro um lugar feliz, mas ninguém sabe se ela gostava mesmo dele. O mar revolto ainda chamava, beijava seus ouvidos com os sons das ondas rodopiantes a quebrar na areia da praia, e toda aquela música era um convite tentador. E sabia-se: ela amava o mar revolto. Ela queria, no fundo, sim, precipitar-se de vez nas águas e perder-se naquele mar escuro e na luz da lua, cheia de segredos e histórias profundas de paraísos perdidos, tesouros brilhantes e campos verdejantes. As ondas se embolavam num ritmo aleatório, dentro do seus olhos escuros e na areia da praia. Num compasso obscuro espumavam ao quebrar e rolavam, sibilando, tentando alcançar os pés dela, presos na areia úmida. Elas queriam abraçá-la e trazê-la para as profundezas. A lua e o porto e o mar desenhavam-se em seus olhos escuros. Os cabelos desgrenhados esvoaçavam ao vento, emoldurando seu rosto de fada. Ali ela era só silêncio e dúvida. Pesar e dor. Um sorriso partido, um olhar perdido, uma lembrança desfeita feita fumaça e vapor. Solidão e vazio. A natureza do seu verso dócil contrastava com o perverso comportamento do mar. Ela parecia entoar baixinho uma canção de ninar, mas o mar regia uma orquestra barulhenta. O mar gritava e se debatia. Era um turbilhão espumante, um maremoto violento que tentava tragar o mundo para si. Cheirava a ferro e sangue, a fogo e aço. Cheirava a sal e dor, ódio e rancor. Gritava e se debatia. O ribombar das ondas era como tambores e o vento contra o mar como trombones. O sibilar das ondas na areia eram cordas que se partiam e lâminas que rasgavam a carne. Existem coisas que não devem ser ditas, coisas que não devem ser feitas, coisas que não são para acontecer. E como tudo que não deve ser, não o é, ali ficaram naquela dança, de modo perene, interminável. Ela, o mar, a lua, o porto. O porto jazeria esquecido algum dia, mas estaria ali o tempo inteiro enquanto aquela dança durasse. Só que seus pilares cheios de musgo e sua aura conflituosa não mais a apeteciam. E ainda sim era difícil para ela entrar no mar. Temia o frio, temia se afogar, temia perder-se e no meio da perdição temia não se encontrar. Logo o dia passaria, e como o tempo urge o leitor deve saber logo do destino dos outros três: a lua sumiria, a maré traria o mar pra longe dos pés dela, e ela adormeceria na areia, seu corpo aninhado sobre si mesmo, nua. Silêncio e dúvida. Pesar e dor. Um sorriso partido, um olhar perdido, uma lembrança desfeita feita fumaça e vapor. Solidão e vazio.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Cemitério enluarado

Versos sombrios jazem na escuridão.
Sibilam palavras amargas num silêncio.
Cortam a carne como um açoite.
Sopram um vento frio
Que chicoteia a alma já morta
Que jaz num cemitério enluarado.

Roleta russa

Seus olhos embriagados não viam nada. Era tudo um borrão, cachoeira e fumaça. Só sabia distinguir o contorno suave das curvas da garrafa sobre a mesa. Não via os detalhes encrustados no vidro frio, cuidadosamente desenhados quando aquela garrafa verde ainda era um pedaço incandescente de fogo e ardência. Estava sentado na cadeira de madeira que ficava na varanda, defronte a verde doçura do mato e da solidão, num lugar isolado de barulhos estridentes, gestos, olhares e feições graves. Ali era tudo um silêncio com alguns sons pontuais: a brisa, as folhas, a chuva, os pássaros. Sim, havia pássaros. Um punhado deles cantava uma melodia que tinha no seu compasso a contagem sutil do tempo passando e do dia morrendo. Peneirava uma chuva fina, e o som da chuva e os pássaros beijava os ouvidos dele suavemente, como baforada de fumaça. Na outra mão que não visava a garrafa pendia entre os dedos um cigarro não fumado, que queimava rapidamente, tragado pela brisa. Serviu-se da garrafa e bebeu um longo gole de vinho. Depois um trago. E lá ficou durante um tempo. Um gole. Um trago. Um gole. Um trago. Um compasso discreto, a contagem do tempo que fazia o dia morrer. Logo anoiteceria. Logo seu cigarro acabaria e sua garrafa estaria vazia. Seus olhos estavam fixos no horizonte, e este não era muito distante: o máximo que podia ser visto era um emaranhado de árvores logo ali, e sua visão, na verdade, embaçada pela embriaguez e distorcida pela dor, só lhe permitia ver um borrão verde. As vezes sua cabeça pendia. Seu óculos estava embaçado, mas aquilo não fazia diferença. Há de se dizer também que havia sobre o seu colo uma pistola. Seis tiros ela tinha, perfeitamente aninhados numa roleta negra. Sua arma era negrume, sua mente neblina, seu corpo embriaguez. E eis que, dado o cigarro fumado e a garrafa vazia, seus dedos deslizam sobre o cabo da arma. Sua mão tremula distribui os dedos na arma e ele levanta o braço contra o horizonte. Seus alvos eram os pássaros. A melodia incessante lembrava-lhe do relógio inexorável a fazer tique-taque. Seis tiros para acabar com a dor. Um. O som se distribui no ar, um eco surdo e seco se propaga pelas arvores e resvala nas superfície. Os pássaros se agitam, mas nenhum cai. E retornam a cantar. O primeiro tiro é esperança e tentativa. É fervor e ansiedade. Dois. Um som igual, idêntico ao primeiro. Nenhum pássaro cai. Eles voam, batem asas e depois cantam mais alto. Ele range os dentes tão forte que poderia quebrá-los. O segundo tiro é insegurança, é esperança e medo, mas é também otimismo. Três. E tudo acontece da mesma forma. Não há silêncio. Tique-taque. O terceiro já tem um quê de desespero e raiva. Já não tem a mesma frieza, já não existe cautela e pré-medição. Quatro. Nada. Tudo vão. O intervalo entre o terceiro e o quarto é muito sutil. O quarto já é incredulidade e puro desespero. E logo vem o quinto. Cinco. Nada. O tempo é inexorável, e assim são os pássaros a cantar e voar, e assim é a dor. E eis que ele desiste de mirar os pássaros. Seu braço se movimenta rapidamente, com uma destreza não mostrada até o momento, e logo sua têmpora sente o cano frio da arma. Seis. A garrafa cai e se quebra. Já não existem mais cigarros. Já não existem mais pássaros. Silêncio. Enfim, silêncio. Ás vezes só é possível silenciar a si mesmo.    

Esmeralda

Seus olhos eram profundos e tragavam o mundo, como apetece aos poetas. Perto das pupilas eram como lareira, ardiam indagações e respostas e segredos, um brilho pálido amarelado, mas intrigante como céu noturno estrelado. Mais pra longe eram mais claros, traziam consigo um vazio pungente, um silêncio estrelado. Silêncio dentro de silêncio. O brilho verde esmeralda das bordas era cortante como vidro. Grande e vivo. De brilho alto, tão alto como uma mulher alta na ponta dos pés. Sua expressão era austera. Séria. Eu diria que seu sorriso escondido era guardião de razões e motivos. Ele raramente se mostrava, e o olhar rígido dela podia cortar e assustar os pobres de espirito. Mas caso ela quisesse, como a calmaria que sucede a ressaca do mar revolto, poderia desfazer corações de pedra. E esses seres capazes de desfazer corações de pedra são no minimo perigosos. Sob o céu noturno seus cabelos negros se perdiam. Eram austeros, feito carvão, risonhos feito chocolate, serenos como as águas lisas de um rio. Gostavam de brincar ao sabor do vento feito brasa de fogueira, e rodopiantes jogavam-se sobre a sua boca. A boca era a guardiã do sorriso. A guardiã do guardião. Ela era brilho, feito maçã corada, e poesia e desejo e um sonho de verão. Era fada, emoldurada. Rainha coroada. Plebeia de roupa enlameada e fina dama num vestido longo. Era um incógnita e uma interrogação. Uma poesia sutil. Uma prosa feroz. Um desejo ardente. Mas só um desejo.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Amor (livre) de carnaval

Eu te amo, meu bem
mas só por hoje, e agora
porque sei do seu espirito livre
e não sou de prender os pássaros
nem quero ser âncora de ninguém
que não queira também.

Eu te amo, meu bem
mas só enquanto os nossos lábios se tocam
nesse amor de carnaval
só enquanto nosso abraço dura
e estou junto de você.

Eu te amo, meu bem
por hora vamos só voar
e cantar por aí, estou me divertindo
enquanto eu posso puxar o seu cabelo
encharcado de suor, nesse beijo.

Eu te amo, meu bem
mas só enquanto posso dançar contigo
pra nós dois variarmos a dor
só enquanto estamos bêbados
e o mundo gira
e esse dia é bonito.

Nunca amei tão rápido, meu bem
e desamei tão fácil.
Admiro as pessoas de espirito livre
eu diria, antes, "cuidado"
mas hoje digo: "inspire-se".