terça-feira, 16 de dezembro de 2014

52.287

E eis que ali, mais uma vez, estava o vendedor. Prostrava-se atrás de seu tabuleiro, recostado indiferentemente sobre a cadeira. Nas mãos tinha um pequeno pedaço de pano, um quadrado de tecido macio sem nenhum detalhe com a qual carinhosamente polia um conjunto de pequenas garrafas. Várias delas estavam dispostas sobre o tabuleiro, e estranhamente nenhum dos itens usuais que ele costumava vender estavam ali junto com ele. As garrafinhas que estavam lá eram diferentes das usuais. Na verdade, hoje não era um dia de negócios. Era uma manhã azulada quando ele acordou daquele dia e, diferentemente do resto banal das pessoas, o azul lhe trouxe uma tristeza grande. A flor da hipocondria que nascia em seu jardim era azul, dessa vez. Mas eram nos dias ensolarados que as pessoas costumavam comprar felicidade, que ele vendia em garrafas que não eram como aquelas. Ocorre que o dia nublou: uma tempestade nebulosa abraçou a cidade, e em dias cinzentos não há porque comprar felicidade. Infelizmente o vendedor não possuía tristeza e angústia para vender que não bastassem as próprias, e em dias de chuva quer-se tristeza e angústia. Quem passava ali sentia uma falta pungente. Havia um pedaço faltante naquele quebra cabeça. Uma peça, e daquelas importantes, que dificultam o entendimento da obra. Certamente, arriscavam dizer com pomposa certeza, a bela moça que havia feito negócios com ele recentemente não viria mais vê-lo, pelo menos por um tempo. E era verdade. A despeito de seu sincero convite para o paraíso perdido, a moça preferira embarcar numa outra viagem pra uma terra diferente. Pegou a moeda mágica que havia comprado, sussurrou um desejo na fonte e se foi. Não se sabe ao certo para onde, e que terras, áridas ou verdejantes, ela iria encontrar. Peneirava uma chuvinha fina agora, igual ao choro dele naquele momento ao polir com carinho as garrafinhas. Era um choro que lavava a alma. E misturado a ele havia um sorriso, que o fazia provar das próprias lágrimas. Tinham gosto de despedida, mas deixavam consigo uma lembrança, uma possibilidade - não promessa, veja - de retorno, um desejo profundo guardado no fundo da alma que ele, tão bem calejado, guardaria durante longo tempo. Devido a tal incidente retirara as garrafas de dentro de um baú que guardava debaixo do tabuleiro. Eram as garrafas de memórias. Memórias dele. Não as venderia, jamais, por isso estava fechado para negócios. Acontece que nessas horas é comum recorrer a memória em busca de conforto. Polia uma por uma com serena determinação, e sempre ocorria de se perder por ali. Depois de terminar as memórias, guardou-as no baú, mas antes de fazê-lo, pegou de dentro do baú outro baú. Um baú dentro de um baú, para guardar segredos profundos. Era uma caixa bem simples, de madeira opaca. Nenhum detalhe, nenhum alarde. Nenhuma anunciação pra guardar memórias profundas. Dentro dela havia dois frascos de vidro em formato de esfera. Um deles era totalmente sólido, e na solidez (pra não dizer solidão, que cabia também ao momento) curvas pareciam se perder, e do outro emanava uma voz calma e sincera. Eram objetos delicados, guardados com um tom sentimental. Neste momento o vendedor passou longo tempo a olhá-los. Colocou-os sobre o tabuleiro - agora vazio. Sua expressão permaneceu imóvel, tácita, sóbria. Havia um tom de pesar nos seus olhos e um sentimento de dor pelos objetos: uma leve mistura que culminava numa raiva sibilante. Por fim saiu de longa meditação e tirou do bolso um outro frasco: um terceiro, de mesmo formato que os outros três. A diferença é que esse terceiro acabara de ser feito. E a grande diferença é que era oco por dentro, e havia sido feito pra ser daquela forma e abrigar dentro de si o que viesse. Esse frasco arrancou um sorriso do vendedor. Um sorriso que lembrava a felicidade. E eis que então ele se convence de que a caixa não era lugar para aquela peça. Guarda o baú do baú debaixo do tabuleiro e galga a mais alta parte da estante atrás da sua cadeira, onde os clientes sempre passavam os olhos. Lá, bem no alto, põe a esfera oca. Mas ao remeter as outras se dá contas de que nenhuma era tão bonita e tão verdadeira quanto a última. Não se sentia realmente satisfeito ou agradecido com nenhuma das duas primeiras. Ele retorna as duas primeiras ao baú do baú e lá as esquece, mas deixa a terceira ali, no alto da estante. Dali pra frente, passaria a viver como antes. Ou tentaria. Os dias passariam e aos poucos ele se acostumaria. Não diria que esqueceria do ocorrido, da moça, do sorriso: não, isso jamais. Por mais que pudesse parecer que, no futuro, sua vida voltasse ao normal, deixaria o frasco lá pra sinalizar que pelo menos durante um longo tempo ele estaria ali pra ser preenchido, mas também pra dizer que ela teria sempre um lugar especial entre as coisas especiais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário